sexta-feira, 13 de maio de 2016

"A Bíblia é a minha arma!"

Éramos meia dúzia de rapazotes, compartilhando a paixão por Bruce Lee, pelos Led Zeppelin, e por motos japonesas. Os nossos maiores pecadilhos eram uma ginginha furtiva na taberna da esquina e umas valentes jogatanas de cartas, a tostão, "para dar interesse".
O Jorge era o mais aperriado de todos, nessa época em que éramos todos bastante aperriados. Era uma guerra até para usarmos o cabelo comprido, à Robert Plant e à Bruce Lee.

O comprimento do cabelo era letra de samba, naquela época...

Felizmente que o Roberto Carlos deu a volta à coisa:

O Jorge usava o cabelo curtinho e de risco ao lado. Pelos vistos havia qualquer coisa na Bíblia que proibia o cabelo comprido. A mãe do Jorge era uma evangélica ferrenha, que substituíra a capacidade de pensar por um exemplar da Bíblia que trazia sempre consigo, e que constituía praticamente todo o seu vocabulário, feito de capítulos e versículos, espadas de fogo e anjos vingadores...
Cabelo, indumentária, adornos, maquilhagens das irmãs do Jorge eram passadas pelo passador bíblico e resultavam em quatro raparigas tiradas a papel químico, tristes e encolhidas, sempre com medo da espada justiceira de sua mãe, representante de Deus na Terra, com procuração passada no notário evangélico. Pareciam quacres em versão infeliz, e só deixaram de parecer quando se emanciparam e ganharam cor, nas faces, na roupa e na alma.

Certa tarde de sábado, jogávamos uma partida de cartas na garagem do Toninho, docemente embalados pelo pequeno leitor de cassetes, gozando a nossa mocidade, quando, abrindo o portão sem autorização, o Anjo do Senhor irrompe, de faces vermelhas, espumando indignação e ira em nome de Jesus!

Atónitos, assistimos ao arraial de pancadaria que desfigurou a cara do nosso amigo, que cometera o abominável pecado do jogo da lerpa a tostão! Para o livrar das chamas do Inferno, sua mãe aplicava-lhe um correctivo de fazer inveja ao Bruce Lee, acompanhado de uivos lancinantes de fazer inveja aos Led Zeppelin.

Concluído o acto de profundo amor materno, agarrou-o por uma orelha, a pingar sangue, e virou costas. Passou o portão, mas achou por bem voltar atrás e erguer O LIVRO na mão direita, enquanto a esquerda segurava a orelha do Jorge. E contra luz do sol da tarde que nos cegava, a mulher de um só livro proferiu:
- A Bíblia é a minha arma!
Ficámos ainda muito tempo mudos e assombrados, enquanto o velho gravador regurgitava Whole Lotta Love.
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Noutro dia, pela enésima vez, a Senhora Mãe do Jorge bateu-me à porta. E pela enésima vez me tentou converter. Felizmente que não sou filho, ou lá seria salvo dos infernos à bofetada.

- Desculpe, D. Ana, mas como já lhe disse várias vezes, já conheço a vossa religião, mas eu sou espírita.

- Hã? - interrogou a D. Ana, sem saber se ouviu bem.

- Sou espírita - repeti - a minha filosofia é a filosofia espírita.
- Ah, mas ISTO não é filosofia - e levantou a Bíblia, teatral, de olhos em alvo, como naquele triste dia - ISTO é A VERDADE!
E foi-se embora, mulher de um livro só.


6.9.2009

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