sexta-feira, 13 de maio de 2016

Os Palermas e os Protestantes



Quando eu era pequeno, a liberdade não era propriamente o forte de Portugal. Liberdade de opinião, liberdade de crença, liberdade de expressão, todas as liberdades eram vistas com muita desconfiança. No campo religioso, eram reprimidas todas as manifestações que não fossem o Catolicismo. Vigorava a Concordata, um acordo assinado entre a Santa Sé e o Estado Português, que atribuía privilégios à Igreja de Roma. A polícia política Salazarista (a P.I.D.E.), reprimia severamente as outras religiões ou filosofias. Algumas mais que outras, como foi o caso do Espiritismo, que entrou na clandestinidade quase completa.

Um pouco menos perseguidos eram os protestantes. No entanto, a ignorância e a apurada vigilância social, só por si, chegavam para os manter num clima de cautelosa discrição.

Havia na minha rua uma igreja protestante. Há que dizer que na minha óptica de então, não se tratava de uma igreja ou sequer de um local de culto. Nos acanhados conceitos de um garoto da Escola Primária, vivendo num regime e numa sociedade autoritários e fechados, aquele rés-do-chão era um local inexplicável, onde senhores e senhoras se reuniam para cantar em conjunto e para discursarem, à vez, de um púlpito. Ouvia-os e via-os da minha janela.

- O que fazem aquelas pessoas? - perguntei aos adultos da casa.

- Não são assuntos para a tua idade! - a resposta clássica que a geração que me criou tinha para todas as perguntas que fossem além da nossa rua, ou, nesta caso, nem isso...

A negativa só aguçou a curiosidade. Entre os amigos da escola descobri que se tratava dos "protestantes". E que fazem os protestantes? Naturalmente... "protestam"!
A resposta fazia todos o sentido. Protestam! Mas contra quê? Naturalmente, se se reúnem com Bíblias na mão, falam de Deus e cantam, só podem estar a protestar... contra Deus!

Na Catequese Católica ensinavam-nos que Deus estava no Céu e em toda a parte, mas especialmente dentro do sacrário, uma casinha situada no centro óptico do altar-mor. Não nos passava pela cabeça que Deus pudesse de alguma forma estar também naquele modesto rés-do-chão, onde não havia sacerdotes paramentados, altares, imagens, velas ou crucifixos.

Quais valentes cruzados, indignados e ofendidos pelos "inimigos de Deus", que se atreviam a "protestar" contra Ele, jurávamos fidelidade à única religião que conhecíamos e declaravamo-nos prontos para tudo em sua defesa. É que não era só uma questão de não conhecermos mais religiões. O nosso catecismo declarava peremptoriamente que só existiam cristãos (os "bons"), e pagãos (os "maus"). Eram pois os "maus" que ansiávamos erradicar. Ainda por cima eram gente “estranha”. Muitos deles eram ingleses, veja-se só!

Um belo dia vimos passar um cortejo de automóveis pretos, antigos, que muito nos intrigou. Um deles parou, e dele saiu uma simpática velhinha, de touca, à moda dos filmes americanos. Parecia mesmo a dona do Piu-Piu, o passarinhos dos desenhos animados. Se trouxesse na mão uma tarte de maçã, não nos teria espantado. Dirigiu-se a nós, e com um grande sorriso, perguntou:

- Os meninos podem dizer-me, por favor, onde é o teatro onde há hoje o congresso dos Protestantes?

Ficámos desconcertados! Então os inimigos de Deus tinham tão bom aspecto, eram tão simpáticos?... Murmurámos uma resposta entre dentes, e o mistério adensou-se ainda mais.

Nessa mesma semana descobrimos que o pátio onde jogávamos à bola dava para as traseiras da igreja protestante. Colámos o nariz ao postigo para ver de perto o estranho lugar. Estava escuro, mas conseguíamos divisar bancos corridos e armários, o chão de madeira bem encerado, tudo simples, quase pobre, mas impecavelmente limpo e arrumado. Um de nós teve a ideia de meter a mão à maçaneta da porta. Estava aberta. Não hesitámos muito. O lugar infundia algum respeito, mas a nossa ânsia de descobrir o que andariam os perigosos hereges a tramar, era maior. Na semi-obscuridade, cautelosos, percorremos o templo. Não sabíamos o que procurávamos, mas os livros, dentro dos armários, dariam a resposta. Deitámos mão a um. Era um livro de cânticos. Percorremos-lhe as páginas, desejosos de encontrar material incriminatório. Em vez disso, eram versos. Bem bonitos, por sinal. Parámos numa página com um cântico dedicado às crianças. Entreolhámo-nos e abandonámos o local, sem sabermos se era maior a vergonha de termos profanado um templo, ou o embaraço de sermos uns palermas.

Já mais crescidinhos, aprendemos que os Protestantes se chamam assim porque se opuseram a certos abusos clericais. E que a designação de Protestante que essas Igrejas ostentam, é afinal positiva. E que os protestantes são pessoas de Bem, que não fazem mal a ninguém – bem pelo contrário.
 

---------------------------------------------------------------


Noutro dia soube que um determinado grupo religioso se juntou à frente do centro espírita que frequento, e que esteve por lá a fazer umas rezas, supostamente para espantar o “Satanás”. Não estava ninguém no centro para os convidar a entrar, infelizmente.
 
Estão tão equivocados a nosso respeito, esses bem intencionados irmãos, como eu e os meus jovens amigos estávamos equivocados a respeito dos protestantes. Mas não pude deixar de sorrir. Não serei tão simpático como a dona do Piu-Piu, mas já tenho um ou outro cabelo branco.

7.7.2010


Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.