sábado, 14 de maio de 2016

Eu, o Ankou...

 
Fato rasgado, chapéu de aba larga, aparência de esqueleto e grande foice nas mãos, o Ankou é uma figura fantástica, que povoa as lendas da Baixa Bretanha, França. Nas noites escuras, no meio das brumas que vêm do Atlântico Norte, o Ankou vagueia pelos caminhos, recolhendo as almas dos mortos na sua carroça, para as transportar para o outro mundo. É uma figura temida, mas sempre presente. À beira das estradas, ou nas igrejas, esculturas mais ou menos assustadoras do Ankou ostentam legendas como “A morte, o julgamento, o Inferno frio, Quando o homem em tal pensa, deve tremer”.
 

Numa manhã ensolarada de sábado, fui distribuir panfletos: “Conferência Espírita; A Vida Após a Morte"; Auditório da Câmara Municipal”. Entrava nas lojas, nos mercados, nos cafés, nas barbearias, pedia autorização, e deixava os papelinhos. Uns, indiferentes, autorizavam sem sequer olhar.Ponha aí, ponha aí…” ou perguntavam “onde era o baile”

Outros liam e olhavam-me, divertidos, como quem diz: Há cada maluco neste mundo…”. Um ou outro, sobretudo os mais novos, despacharam-me, com ar desconfiado, e um seco “Deixe ficar que eu depois penduro”. Bastantes, sobretudo os menos novos, acolheram-me muito bem, fizeram muitas perguntas, contaram muitas experiências.

Entrei numa papelaria, pedi a autorização da praxe, e, enquanto colava o panfleto no balcão de vidro, a senhora franziu a testa e disse, com uma pontinha de incómodo: “É assunto que não me interessa nada…”. Um pouco constrangido, respondi-lhe que, apesar de tudo, como é assunto que mais tarde ou mais cedo vamos ter que enfrentar, mais vale sabermos um pouco acerca dele.

A senhora ficou pensativa. E eu também. Sentado num banco de jardim, descansando de três horas a palmilhar as ruas, fiquei a olhar para os sapatos e a perguntar-me se teria estragado a manhã daquela simpática senhora. E foi então que me senti o Ankou, lá da Finisterra. 

“É insensato quem não consegue ver, Que é necessário morrer”, lê-se nas esculturas da inquietante personagem. Ele faz questão de lembrar que deixaremos esta vida, e que a probabilidade de nos esperar “o Inferno frio” é elevada. É um papão para adultos, que já comem a sopa de boa vontade, mas a quem é preciso lembrar as más consequências das suas más acções. A perspectiva de irmos parar a um Inferno frio, ainda por cima por motivos bastante discutíveis, fez com que a ideia da vida após a morte se tornasse tão impopular. Entre uma Eternidade no Inferno, e uma vida alegre neste mundo, a escolha tem vindo a recair na segunda hipótese.

O Espiritismo veio ajudar a rectificar essa ideia. Não há castigos eternos, nem juízes implacáveis e injustos. A vida continua, a morte não existe. A nossa felicidade depende de nós. Deus não castiga ninguém! Será pouca coisa, esta revelação?

Mais tarde ou mais cedo todos teremos de enfrentar a Morte. A de um amigo, a de um familiar, a nossa. O que nos ensina o mundo sobre a Morte? Como nos prepara o mundo para a Morte? O Materialismo diz-nos: após esta vida, o Nada. A generalidade das religiões promete a bem-aventurança eterna para alguns, o sofrimento dos infernos para os outros. Perante este panorama, uma terceira opção: esquecer, pensar noutra coisa.

Espero ter sido um Ankou feliz para aquela senhora, que chegou numa manhã de sol e não numa noite de nevoeiro, para lhe anunciar que nunca morrerá…


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