sábado, 14 de maio de 2016

O Melhor Guarda-Redes do Mundo

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É sempre o primeiro a chegar e o último a ir embora. É o mais entusiasta, o mais empenhado, o mais combativo da minha equipa de jovens jogadores de xadrez. É o Eugénio. Tem 13 anos, é simpático, bem-humorado e inteligente. Uma negligência médica durante o parto fê-lo ficar com uma deficiência motora que lhe atinge o lado esquerdo do corpo. Coxeia acentuadamente, e tem pouco equilíbrio.
 
Tenho vindo a conhecê-lo aos poucos. No final dos treinos costuma desafiar-me para uma partida, pois já percebeu que nessa altura estou cansado e é mais fácil ganhar-me. A sua argúcia e vontade de vencer só rivalizam com o seu impecável desportivismo. É um miúdo fora de série.
 
O físico delicado e o temperamento afável contrastam com a garra que sabe mostrar quando é preciso. Faz-me sempre lembrar o seu homónimo Gene Vincent, pioneiro e figura emblemática do rock’n’roll, que também parecia ter em si duas naturezas. Com o seu pulover branco e ar de menino bem comportado, era a imagem da doçura. Com a camisa negra, em cima do palco, transmitia uma energia indomável que arrastava multidões. Também coxeava, o Gene Vincent. Essa característica contribuía para a composição da sua imagem de palco, e fazia as raparigas entrar em euforia.
 
Um destes dias durante uma das habituais partidas de xadrez com o Eugénio, falávamos da sua ambição de vir a ser técnico de futebol, talvez de vir a treinar o Benfica. A conversa ia amena e bem-disposta, como de costume, mas eis que os olhos se lhe enchem repentinamente de lágrimas, que começam a cair copiosamente sobre o tabuleiro de jogo. Confessa-me que, antes de ser técnico de futebol, o que mais queria era jogar futebol! E não pode. Entre soluços, com a frontalidade dos seus 13 anos, pergunta-me porque é que Deus permitiu o que lhe aconteceu. “Eu só queria poder jogar futebol!”.
 
Estou gelado. Estou gelado por dentro e por fora. Respondo que acho que Deus tem uma razão para tudo o que faz, mesmo que nós não a entendamos às primeiras. Talvez ele esteja temporariamente a lutar com uma dificuldade, como um futebolista que se oferece valentemente para jogar, mesmo lesionado.
 
Ele baixa a voz e olha em volta. “Eu acho que nós vivemos várias vezes” – sussurra – “mas tenho medo de vir sempre assim, com esta deficiência!...”
 
“Amigo Eugénio, eu acredito firmemente que vivemos várias vezes, como tu dizes. E garanto-te que podes pôr de parte esse receio”.
 
Ele suspira. Parece que de uma assentada percebeu que Deus não foi injusto em mandá-lo jogar o jogo da sua vida lesionado, e que terá mais oportunidades de jogar, em plena forma.
 
Lembrei-me do Gene Vincent, e como tínhamos o computador ali à mão, mostrei-lhe as flagrantes semelhanças entre os dois. Falámos da perna magoada do Gene, das suas músicas, e do desassossego que ele causava entre as raparigas.
 
Pergunto-lhe a que posição gostava de jogar. “A guarda-redes, mas costumo ficar a arbitrar…”.
 
Continuámos a jogar a nossa partida de xadrez, enquanto a calma voltava a inundar-lhe as feições. 

Aos poucos, foi recuperando o sorriso que lhe conheço. Tomou uma resolução. Ia treinar com o irmão, em casa, e pedir uma oportunidade como guarda-redes.
 
Chegou o dia do Torneio de Futebol da Páscoa. Gritos entusiasmados ecoam na manhã primaveril. Há uma silhueta esguia na baliza, toda vestida de encarnado. Atira-se galhardamente à bola, disparada em remates fulminantes. Estou emocionado! Estou a ver o melhor guarda-redes do mundo!


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