![[66_1.jpg]](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhw30iQkykLzyf3dxKsP76RGf1gMW5q20cxAAi69AbHCBRNfIsX6Z9dXr5cjF2V2dO9tHeGnd772vIijj-J3g-Hu23pQQQkM14DZhR2o9k2BGSLz5SUxMi8x5mmJnPhdChNaPi7xKHUIu4/s1600/66_1.jpg)
É sempre o primeiro a chegar e o último a ir embora. É o mais
entusiasta, o mais empenhado, o mais combativo da minha equipa de jovens
jogadores de xadrez. É o Eugénio. Tem 13 anos, é simpático,
bem-humorado e inteligente. Uma negligência médica durante o parto fê-lo
ficar com uma deficiência motora que lhe atinge o lado esquerdo do
corpo. Coxeia acentuadamente, e tem pouco equilíbrio.
Tenho vindo a
conhecê-lo aos poucos. No final dos treinos costuma desafiar-me para uma
partida, pois já percebeu que nessa altura estou cansado e é mais fácil
ganhar-me. A sua argúcia e vontade de vencer só rivalizam com o seu
impecável desportivismo. É um miúdo fora de série.
O físico delicado e
o temperamento afável contrastam com a garra que sabe mostrar quando é
preciso. Faz-me sempre lembrar o seu homónimo Gene Vincent, pioneiro e
figura emblemática do rock’n’roll, que também parecia ter em si duas
naturezas. Com o seu pulover branco e ar de menino bem comportado, era a
imagem da doçura. Com a camisa negra, em cima do palco, transmitia uma
energia indomável que arrastava multidões. Também coxeava, o Gene
Vincent. Essa característica contribuía para a composição da sua imagem
de palco, e fazia as raparigas entrar em euforia.
Um destes dias
durante uma das habituais partidas de xadrez com o Eugénio, falávamos da
sua ambição de vir a ser técnico de futebol, talvez de vir a treinar o
Benfica. A conversa ia amena e bem-disposta, como de costume, mas eis
que os olhos se lhe enchem repentinamente de lágrimas, que começam a
cair copiosamente sobre o tabuleiro de jogo. Confessa-me que, antes de
ser técnico de futebol, o que mais queria era jogar futebol! E não pode.
Entre soluços, com a frontalidade dos seus 13 anos, pergunta-me porque é
que Deus permitiu o que lhe aconteceu. “Eu só queria poder jogar
futebol!”.
Estou gelado. Estou gelado por dentro e por fora. Respondo
que acho que Deus tem uma razão para tudo o que faz, mesmo que nós não a
entendamos às primeiras. Talvez ele esteja temporariamente a lutar com
uma dificuldade, como um futebolista que se oferece valentemente para
jogar, mesmo lesionado.
Ele baixa a voz e olha em volta. “Eu acho que
nós vivemos várias vezes” – sussurra – “mas tenho medo de vir sempre
assim, com esta deficiência!...”
“Amigo Eugénio, eu acredito
firmemente que vivemos várias vezes, como tu dizes. E garanto-te que
podes pôr de parte esse receio”.
Ele suspira. Parece que de uma
assentada percebeu que Deus não foi injusto em mandá-lo jogar o jogo da
sua vida lesionado, e que terá mais oportunidades de jogar, em plena
forma.
Lembrei-me do Gene Vincent, e como tínhamos o computador ali à
mão, mostrei-lhe as flagrantes semelhanças entre os dois. Falámos da
perna magoada do Gene, das suas músicas, e do desassossego que ele
causava entre as raparigas.
Pergunto-lhe a que posição gostava de jogar. “A guarda-redes, mas costumo ficar a arbitrar…”.
Continuámos
a jogar a nossa partida de xadrez, enquanto a calma voltava a
inundar-lhe as feições.
Aos poucos, foi recuperando o sorriso que lhe
conheço. Tomou uma resolução. Ia treinar com o irmão, em casa, e pedir
uma oportunidade como guarda-redes.
Chegou o dia do Torneio de
Futebol da Páscoa. Gritos entusiasmados ecoam na manhã primaveril. Há
uma silhueta esguia na baliza, toda vestida de encarnado. Atira-se
galhardamente à bola, disparada em remates fulminantes. Estou
emocionado! Estou a ver o melhor guarda-redes do mundo!
1.8.08
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