sexta-feira, 13 de maio de 2016

As minhas três refeições preferidas



Nunca protagonizei nada de épico, não sou propriamente um gourmet e muito menos um escritor. O que me levou a querer partilhar convosco as três refeições de que mais gostei foi o desejo de partilhar as três singelas lições que com elas aprendi.

A primeira tinha eu uns 17 anos, e estava num emprego como pintor da construção civil. Foram tempos muito agradáveis, porque adorei esse trabalho e porque nessa altura conheci uma rapariga loira de sorriso tímido que enchia os meus dias de felicidade. Chegava ao trabalho pela fresquinha, ao som dos passaritos que acordavam cedo, tinha uma pausa para almoço - que me sabia a céu - voltava ao trabalho e lanchava no cimo de um andaime antes de "despegar" e voltar a casa com aquela sensação de plenitude que só o trabalho dá.

Um dia, a rapariga loira lembrou-se de me trazer o lanche, e passou aqueles 15 minutos deliciosos ao meu lado, no andaime, enquanto eu saboreava o pão de leite com queijo e o sumo de pêssego "Frami", daqueles de lata que já não se fabricam. Senti-me escandalosamente feliz e privilegiado, dentro do meu fato-macaco, como nunca me tinha sentido. Tudo exalava perfeição e quase juraria que as flores da erva da fortuna que atapetavam o chão mais abaixo, se agitavam ao compasso da brisa que nos banhava naquela tarde de Verão.

A rapariga loira passou nesse dia a ser minha namorada e é ainda minha mulher. E nunca mais um pão de leite com queijo e um sumo de lata me souberam exactamente assim. Há coisas que são irrepetíveis e temos de estar alerta para as apreciar como deve ser. E não é preciso ser-se um eleito, um afortunado da Terra, para se estar no topo do Mundo. Nem que seja por 15 minutos.
 
 

 
 
A segunda refeição do meu top 3, e por ordem cronológica, foi ainda menos gourmet que a primeira. Mas soube igualmente bem. Foi num domingo de manhã, dia de corridas para mountain bikers inveterados como eu. Escapuli-me ainda de noite, silenciosamente para não acordar ninguém em casa, em direcção a Alcochete e à mais bela corrida em que participei. Muita areia, muito saibro, muita floresta, muitos quilómetros, muita aventura.

Cheguei já em cima da hora, levantei o número para a máquina, e o dorsal para o meu jersey esburacado. Recebi uma garrafa de água e um pãozinho com marmelada, que enfiei distraidamente num dos bolsos que a roupa de ciclismo tem atrás, ao fundo das costas. A corrida foi daquelas que revivemos para o resto da vida. Muita chuva que caíra na véspera, misturada com muito suor e muitas quedas, depressa fizeram dos concorrentes estátuas de cor castanho avermelhada. O terreno escorregadio proporcionava os despistes, mas ninguém se importava muito. Na areia ninguém se magoa.

Após cortar a meta, água não me faltava, ainda que o meu bidon tivesse deixado entrar uma generosa quantidade de areia. Estava capaz de devorar qualquer coisa, após aquelas horas a pedalar, quando verifiquei então que me tinha esquecido de levar comida ou dinheiro. Valeu-me o pãozinho que ainda estava no bolso de trás. Foi a minha refeição, generosamente temperada com a areia molhada e a lama, e acompanhada de água do bidon.
E que bem que me soube!
Saboreei-o pachorrentamente, de olhar perdido nas florestas, sentado ao pé da bicicleta. Merece estar entre as minhas refeições mais principescas.

Ah, a moral da história: é que o apetite é que dá mais sabor à comida. E à vida.
 

Já vai sendo altura de terminar a minha tripla dissertação gastronómica. As anteriores refeições de que vos falei foram uma sandes de queijo com um sumo de lata (a primeira) e uma sandes de queijo com alguma areia, acompanhada de água (a segunda). Desta vez a ementa é ainda mais frugal.

Foi há umas semanas, quando os últimos dias deste Inverno seco e frio ainda teimavam em não querer deixar chegar a Primavera. Eu seguia de moto, num dia de semana, em direcção a casa. Saíra com um bocadinho menos de agasalho do que seria recomendável. Afinal, a deslocação era pequena. Eram apenas 25 quilómetro para cada lado, e era "um instantinho". Por qualquer razão acha-se que se nos demorarmos menos o frio tem contemplações connosco. O frio roía-me as mãos. Ou aguentava mais um bocadinho, chegava a casa e aquecia-me, ou parava para ganhar coragem para o resto da viagem. Parei.

A noite caiu com uma velocidade tropical. Não havia lua nem estrelas. O cheiro distante de folhas de plátano queimadas chegava-me à narinas. Algum melro teimoso ainda fazia aquela algazarra crepuscular tão característica aqui deste bocado de planeta. Entre escuridão, frio e suave cheiro a fumo, pareceu-me ser a única criatura pensante num raio de alguns quilómetros. Aqueci-me ao motor da moto, como se fosse uma fogueira. Bebi água da fonte e roí uma laranja apanhada à beira do caminho. Poucas vezes na vida me senti tão feliz, tão anónimo, entre o ondular do fumo, o canto do melro, o aroma suave das laranjeiras e o girar do Universo que a escuridão ocultava aos olhos.

Na altura não pensei em nada de especial, apenas desfrutei dos instantes de enlevo que o fim de tarde inopinadamente me trouxe. Suponho que me tenham encantado sentir-me tão pequeno e insignificante, cercado do mistério infinito da Vida e do Universo. E ao mesmo tempo afortunado por fazer parte dele. Talvez um dia venha a entender porque me senti tão bem. Para já, tenho a vaga impressão de que é mais ou menos isto que procuro nesta vida. Às vezes, quando menos espero, encontro.
 
 
8.4.2012

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