sexta-feira, 13 de maio de 2016

Em Viagem

 
 
Fim de tarde fresco, ventoso, nuvens velozes correndo no céu em direcções desencontradas. Um mar de flores silvestres e ervas do campo, ilustres e nobres desconhecidas, dançam um bailado sublime. Como todos estes tesouros que agora me cercam. O peneireiro pára no céu, prodigiosamente descansando sobre massas de ar em turbilhão. Tanto ar. Em movimento.


Uma e outra andorinha voam baixo, descrevendo curvas doces sobre mim. As nuvens agrupam -se para enquadrar mais um pôr-de-sol único e irrepetível, que Deus oferece todos os dias mais ou menos à mesma hora. A cada minuto o céu muda. Além, sob o banco de nuvens de cores sem nome, raios de luz descem até ao mar, como medievais escadas de ouro para o Paraíso. E passa um bando de estorninhos, tremelicando dez vezes por segundo. Não sei se estão contentes com este espectáculo, mas parecem tão felizes como eu, que me aninho no saco-cama e vou bebendo o final da sinfonia divina que a escuridão lentamente, docemente, afaga e extingue.


O peneireiro continua a parar sucessivamente em coordenadas celestes que ele lá saberá. Já esvoaçava assim nos tempos de D. José, nos de D. Afonso Henriques, nos de Viriato. Já conhecia as coordenadas celestes todas quando chegarem os primeiros homens ao planeta Terra, que agora se despede do Sol por mais umas horas.


Na cidade ficaram os outdoors das publicidades do momento, os comboios metroplitanos a expelir e engolir gente, as montanhas de betão, vidro e aço, os executivos engravatados e os trabalhadores cansados, os loucos e os junkies que não aguentaram a pressão a que o ser humano insiste em se condenar. Lá do alto, a cidade é uma mancha na paisagem, que a corujinha evita, preferindo assomar nos altos ramos do carvalho. Boa noite, corujinha.


Há poucas horas que deixei o asfalto e a multidão. O ar cru e verdadeiro nos pulmões, a subir a serra, já me lavou a alma. A bicicleta de montanha repousa ao pé da tenda minúscula, e se falasse certamente diria: "Obrigado, sou uma bicicleta de montanha e é aqui que estou no meu habitat". Agradeço mentalmente a quem a projectou e fabricou. Era concerteza isto que tinha em mente.


Beethoven deve ter sentido coisas assim quando compôs a sua 6ª Sinfonia. Graças aos prodígios da tecnologia posso estar aqui, directamente do meu saco-cama, na minha tenda situada ao pé do carvalho grande, no alto da montanha com vista para a costa, a compartilhar com o planeta inteiro a minha eternamente perplexa admiração e gratidão por Quem projectou e fabricou tudo isto que os meus olhos, os meus ouvidos, o meu olfacto, e todo o meu ser bebem sem se cansarem.


A refeição frugal sabe-me a nozes, madeira, fumo e vida. Em breve as pálpebras vão pesar-me e vou adormecer com o meu cão, que nunca desdenha servir-me de almofada. O meu fiel companheiro parece que percebeu que escrevi sobre ele, porque despertou do sono leve e abriu um daqueles sorrisos caninos que nos enchem o coração. Estou perto de casa. Estou no fim do mundo. Estou perto de casa.
 
 
 
14.7.2011

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