segunda-feira, 16 de maio de 2016

O Papa conclui a reforma da eternidade - 2

 

O papa conclui a reforma da eternidadeJuan G. Bedoya
El País

17 de Janeiro de 2011



"No início criou Deus e céu e a terra", reza a primeira frase da Bíblia. Para os que tomam este livro sagrado como doutrina literal, semelhante início ocorreu em apenas uma semana faz agora uns 6000 anos. Também sustentam que existiu um paraíso (um jardim chamado às vezes Éden, a terra das delícias), onde Adão e um apêndice costal chamado Eva tiveram dois filhos, Caim e Abel, que por sua vez... A ditosa história da maçã custou-lhes serem atirados para s trevas exteriores e terem que trabalhar, eles e os seus descendentes, para ganharem o pão "com o suor da sua fronte". O cronista bíblico não registou desemprego naqueles tempos.

É uma curiosa história, com serpente incluída e final infeliz. Na realidade... irreal. Mas as consequências foram terríveis. Como durante séculos o tema do paraíso terreno foi interpretado tal como foi escrito nos tempos do rei Salomão, os pregadores cristãos ensinavam que através de Eva entraram no mundo o mal e a morte, e que por isso a mulher merece o desprezo eterno. "Não sejais nunca nem Judas nem Eva", exortava Pio XII, nos anos cinquenta do século passado, de cada vez que havia ordenações sacerdotais em Roma e recebia em audiência os novos padres.

Há um grande número de pensadores cristãos que proclamaram nos anos sessenta, após o Concílio Vaticano II, o que agora pregam os pontífices. Mas, para o olhar do leigo, a nova escatologia papal vira do avesso a interpretação clássica dos textos sagrados e o que foi ensinado às crianças espanholas em catecismos tão afamados como os de Astete e Ripalda. Também cai estrondosamente a ideia de Tomás de Aquino sobre alguns dos prazeres essenciais dos que vão para o céu: para além da visão de Deus, o sábio Aquino sublinha a pouco cristã contemplação dos sofrimentos dos que foram atirados ao inferno.

Na mesma linha, o colossal Dante prega essa fruição vingativa quando na Divina Comédia, além de se deleitar com a visão da "região dos condenados", constituída por ladrões, usurários, proxenetas, traidores, príncipes negligentes, papas gananciosos e heróis desonestos como Ulisses (por causa do cavalo de Tróia), ajusta contas com os seus conterrâneos de Florença, dos quais foi prior antes de ter sido exilado. na sua viagem ao Além, o poeta cita 32 florentinos que apodrecem nos infernos. É humano tal regozijo, mas de tais exageros procede talvez o outro significado da palavra escatologia, na sua origem um derivado de ésjatos (último) e logos (estudo): o estudo dos últimos dias.

O regozijo de Dante ante o sofrimento dos condenados ao fogo eterno aterrorizou, por outro lado, a Unamuno, que qualifica de "absurdo moral" a simples ideia do inferno. "Por causa do inferno comecei e revoltar-me contra a fé. O meu terror começou por ser o aniquilamento, a anulação, o nada mais além do túmulo. Para quê ainda o inferno?", escreveu.

Com o inferno e com o resto da escatologia cristã, o Vaticano, com o seu enorme poder, encheu de sombras, tristezas e medos durante séculos a visão da Humanidade, com com limites tidos hoje por inaceitáveis. Um exemplo é o do pregador capuchinho Martin von Cochem, que chegou a fixar a altura das chamas do inferno, chamando a atenção para o facto de que o seu fogo é mais tórrido que o da terra: porque ocorre "em lugar fechado", "alimenta-se de pez e enxofre" e é Deus quem o sopra.

"Tu sabes",
diz Cochem, "que quando se sopra o fogo, este arde com mais ímpeto. Se o fogo se atiça com grandes foles, como se faz nas forjas dos ferreiros, as chamas enfurecem-se. Quando é Deus omnipotente quem sopra o fogo do inferno com o seu fôlego, quão horrível não será a sua raiva e o seu furor".

Que uma escatologia tão grosseira e disparatada tenha perdurado durante séculos, explica-se pela ânsia de imortalidade do género humano e pela esperança de um "além" após a morte. Defende-o o teólogo Manuel Fraijó, aluno na Alemanha de Karl Rahner, Hans Küng ou Walter Kasper (director da sua tese de doutoramento). "Já avisava Feuerbach que, se não existisse a morte, nunca existiria a religião. E Nietzsche atribuía a vitória do cristianismo a "essa deplorável adulação da vaidade pessoal lograda a golpe de promessas de imortalidade", acrescenta.

O inferno é, para mais, uma anti utopia destrutiva. Ao ameaçar com penas eternas, pretendia-se infundir o terror e provocar a fuga às tentações mundanas. O olhar o Além funcionava como distracção para alijar os crentes das duas responsabilidades na construção da cidade terrena.

Em fundo está a doutrina da ressurreição, que nasceu também como resposta à injustiça. Diz o teólogo Fraijó: "Existem os injustiçados, os humilhados e os ofendidos, as vítimas do egoísmo e da barbárie. A ressurreição vem satisfazer uma das necessidades fundamentais do ser humano, marcado por uma melancolia de plenitude que unicamente a ressurreição satisfaz. Existe uma antropologia, chamemos-lhe dos insatisfeitos, que que encaixa bem com o anúncio da ressurreição. Para ela, a ressurreição é uma exigência".

Nota: este artigo, que traduzimos (naturalmente com insuficiências próprias de amadores que somos) e postámos em duas entradas, foi publicado originalmente no jornal espanhol El País, mas recolhemo-lo do site católico Redes Cristianas. Juan G. Bedoya, o autor do texto (na imagem), é o jornalista responsável pela informação religiosa no jornal El País. Tanto quanto sabemos é católico e ex-sacerdote. Registamos com agrado que o Catolicismo, religião maioritária a nível mundial, se encaminha a pouco e pouco para a posição da filosofia espírita, enunciada há mais de 150 anos. Só que a Doutrina Espírita não se ficou por aqui. As obras básicas, começando por "O Livro dos Espíritos", continuam à espera de ser descobertas por pensadores de tanto valor como Bedoya. Vieram dos Espíritos - se tivessem vindo de um homem há muito que seriam conhecidas do vulgo. Mas também por isso nós, espíritas, nada temos de nos vangloriar. Não fomos nós que inventámos o Espiritismo; o Espiritismo é a Doutrina dos Espíritos, o Consolador prometido por Jesus.
 
 

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