sábado, 14 de maio de 2016

"Por Toda a Eternidade!"


Aguardava a minha vez de pagar, na loja de jornais, quando entrou de rompante uma perfeita sósia de Bianca Castafiore, a cantora de ópera das aventuras de Tintin. Figura avantajada, busto farto, nariz empinado, envolta em roupas pomposas e adornada de jóias pesadas, a vistosa senhora ultrapassou toda a gente sem cerimónias e fez ouvir bem alto a sua voz: - Ó Amélia, deixei aqui o meu jornal?

- Não, Senhora D. Fulana
– esclareceu, solícita, a rapariga.

- Ah! Então não há dúvida de que mo roubaram! E, perante a estupefacção geral, a senhora encetou uma descrição terrivelmente pormenorizada de todos os sofrimentos excruciantes que desejava ao ladrão do jornal. Um dos clientes não se conteve e exclamou:

- Que horror, minha senhora!...
 
- Acha um horror? Pois fique sabendo que muito pior vai ser o que o ladrão vai sofrer no Inferno por toda a Eternidade! - e repetia, pontuando as palavras com o bater da unha escarlate sobre o balcão: - Por-to-da-a-E-ter-ni-da-de!!! Por-to-da-a-E-ter-ni-da-de!!! 

Em vão o bem intencionada cliente lembrou à senhora o valor do perdão. Tais conceitos, segundo ela, estavam “ultrapassados”. Preferia a doutrina das penas eternas, defendida por algumas religiões cristãs, que na ocasião melhor lhe servia para descarregar a irritação.

De facto, Jesus nunca pregou as penas eternas. As “trevas exteriores, onde há choro e ranger de dentes”, já são suficientemente preocupantes para quem estude séria e racionalmente o assunto. Ferver eternamente em caldeirões de azeite, picado por forquilhas empunhadas por diabretes impunes, foi papão que a imaginação e o êxtase místico criaram.

O Deus de Amor é incompatível com a monstruosidade de sofrimentos intermináveis, mas muito boa gente ainda acredita que nos esperam, em definitivo, o Céu, o Inferno ou o Purgatório. Por recusarem essas ideias ingénuas e injustas, outros não esperam nada após esta vida, ou quanto muito esperam uma vaga absorção ao Todo Universal. Três hipóteses que não satisfazem a Razão nem a sensibilidade. Não tem base histórica nem científica.

Jesus pregou uma “colheita” de felicidade após esta vida, proporcional à “sementeira” de abnegação e amor ao próximo. Contudo, dois mil anos volvidos, a profundidade dos seus ensinamentos continua a ser escamoteada.

Jesus divulgou uma mensagem universal de amor a Deus e ao próximo, de Justiça e Caridade. Mas cada seita tende a afirmar-se como “a mais fiel representante” de Jesus, dando dele a imagem de um chefe religioso, em nome do qual se impõe o cumprimento de preceitos e rituais. De Jesus exalta-se sobretudo o sofrimento da cruz, e em nome dele transmite-se um sentimento de culpa para a Humanidade inteira. É desta imagem errada, de Jesus como chefe religioso sectário e divulgador de um Deus austero, que muitas pessoas se afastam.

Allan Kardec, chamado o Codificador do Espiritismo por ter redigido as cinco obras básicas da doutrina dos Espíritos, chamou a uma delas “O Céu e o Inferno ou a Justiça Divina Segundo o Espiritismo”. A primeira parte desta obra é um estudo filosófico e histórico admirável, de ideias bem arrumadas e lógica cristalina. Aí vemos, por exemplo, que as religiões cristãs copiaram e exageraram o Céu e o Inferno do paganismo. Na segunda parte, a vida após esta vida terrena aparece-nos despida de imagens simbólicas, narrada pelos seus protagonistas, os Espíritos. Mais felizes os que semearam bem. Menos felizes os que semearam mal.

Somos nós que nos enredamos nos infernos das nossas más acções e baixos sentimentos. Somos nós, também, que construímos o nosso “céu”, mercê do esforço no Bem, no cumprimento das leis eternas. Mesmo os mais recalcitrantes acabarão por se redimir, e evoluir para estados mais felizes, pelo seu esforço. É esta a mensagem de Jesus, que o Espiritismo confirma e demonstra. Deus é infinitamente justo e bom!


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