sexta-feira, 13 de maio de 2016

Jorginho


Foi um Inverno de muita água. E de muito vento. Rajadas de sul capazes de atirar um homem adulto ao chão. O trabalho na horta, no pomar e no jardim, foi certificar-me de que não ia tudo pelos ares. Nas noites de chuva, após um banho quente e uma sopa retemperadora, vi passar muitas vezes o corpulento sapo que resolveu domiciliar-se sob uma laje, por debaixo da janela da cozinha. Da espécie sapo-comum, o maroto desloca-se com uma pompa que só visto! Parece um velho tribuno, solene e fleumático. A todo o momento se está à espera de o ver tirar um relógio de bolso, daqueles de corrente de prata. Chamo-lhe o Senhor Simões.

Entretanto, a Primavera lá venceu o braço de ferro com o teimoso Inverno e brindou-nos com dias amenos. O Senhor Simões, que gosta muito da chuva, tornou-se mais discreto. Eu, pelo contrário. Para quem gosta da terra, Abril e Maio são meses de intensa actividade. Até ao por do sol, muitas vezes.

As ervas estão soberbas, altas, coloridas, aromáticas. Os vizinhos, um bocadinho menos. Não é nesta vida que vão entender que nem Salomão se vestiu tão majestosamente quanto elas, as singelas ervas do campo. Do alto dos seus relvados milimetricamente aparados e das suas plantações de exóticas - tudo a exalar e a pingar pesticidas, insecticidas, fungicidas e acaricidas - olham-me com um misto de irritação, desdém e divertimento. Eu, como não como nem bebo veneno da embalagem, também não o ponho na terra e na água que me alimenta. A mim e aos meus comensais, que aproveitam este oásis de terra desintoxicada. Aqui o doido da vizinhança, que teima em não "queimar as ervas ruins", é um maná para eles.

Quando abro uma clareira para fazer uma horta, uma seara ou um canteiro de ornamentais, a passarada põe o guardanapo. Rabiscam umas sementinhas, uns bicharocos, e depois vão à vida deles, de barriga cheia. Mas esta Primavera tem-se destacado um jovem rabirruivo preto, de apetite voraz e atrevimento maior. Comecei a reparar nele e o grandessíssimo atrevido vai de pousar sem cerimónia no cabo da enxada, da forquilha, do ancinho, na pega do regador, em saltitar à minha volta, como um garoto impaciente por mais brincadeira e mais guloseimas.

Noutro dia, ao raiar da aurora, ainda mal tinha pegado na enxada, e aparece o meu amigo, acabado de se levantar da cama. "Olha o Jorginho!" - saiu-me. E ficou o Jorginho. A família, que é céptica das minhas coisas com os animais, as plantas e o Universo (porque não anda por aí ao ar livre como eu), já confirmou que basta eu sair a porta, a descascar pachorrentamente uma maçã, e ele aparece de imediato. É um turbilhão de graça volátil e apressada, cinzento acastanhado, ainda com as penas da cauda muito pouco ruivas. Um rabirruivo, adolescente imberbe, que se fez amigo de um homem já com brancas na cara.

Isto podia ficar tudo entre mim e o Jorginho, em vez de ir parar à Rede Global Mundial Electrónica e se calhar obrigar as pessoas a terem uma "opinião". Os materialistas impenitentes dirão que as minhas apreciações sobre graciosidade rabirruiviana radicam em parâmetros subjectivos e portanto cientificamente irrelevantes. Provavelmente perspassar-lhes-ão as circunvoluções cerebrais os mesmos pensamentos de divertimento mesclado de desprezo que os meus vizinhos experimentam perante a minha recusa em "meter veneno". O passarito é apenas um insignificante incidente neste insignificante incidente que é o Universo, a Vida, o Ser. É um aglomerado fortuito de células que busca nutrientes e se aproxima de mim por reflexo condicionado, como provou o grande Pavlov, tendo para isso supliciado no supremo altar da Ciência um pobre cãozinho inocente - como todos os animais. Taxonomistas da alma humana, se tropeçarem neste recado electrónico, colocá-lo-ão minuciosamente no caixote do lixo que reservam para estes casos incuráveis.

Os mais dados a uma visão espiritualista, talvez vejam no Jorginho um símbolo de renovação e esperança, de perpétua evolução, um princípio espiritual que se ensaia para mais altos voos na esfera do Espírito, e em que desponta já o afecto, a querer ganhar espaço às pulsões essenciais do abrigo, do alimento, da reprodução.

Enquanto digito estas linhas, do lado de fora da janela o meu amigo baloiça-se num caniço, que se dobra todo com o peso dele (a dieta tem sido boa). Está sol. Ele parece divertido. Não tenho nenhuma "interpretação" sobre esta amizade. Reservo-me o direito inalienável de não retirar dela nenhuma moral, nenhuma filosofia, nenhuma ciência. Sob o mesmo sol, respirando a mesma brisa, partilhamos uma bela maçã. Sem veneno. Eu e o Jorginho.
 
 
 
14.5.2014

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