terça-feira, 17 de maio de 2016

O Céu e o Inferno - 3


No tempo de Jesus, os conceitos acerca da vida futura eram vagos, e havia divergências. Alguns grupos judaicos eram materialistas, acreditavam que com a morte do corpo tudo acabava. Outros eram, como hoje, reincarnacionistas. Outros ainda, criam na ressurreição, embora com contornos imprecisos; criam que se voltaria a viver, mas não sabiam exactamente como.

Após a morte do corpo, o destino das almas era, como vimos, anteriormente, o Seol. O Seol era um lugar de espera, de inacção, de um certo"apagamento" da alma. Crê-se que o verbo hebraico shaál, que significa "pedir; solicitar", seja a origem do termo Seol. Assim, a sepultura física, era mais que o lugar onde jaz o corpo material. Era a condição da alma da maioria dos homens, e não um lugar.

Vejamos o que diz a Encyclopædia Britannica (Enciclopédia Britânica; 1971, Vol. 11, p. 276), acerca do Seol:

"O Seol estava localizado em alguma parte 'debaixo' da terra. A condição dos mortos não era de dor nem de prazer. Nem a recompensa para os justos nem o castigo para os iníquos estavam relacionados com o Seol. Tanto os bons como os maus, tiranos e santos, reis e órfãos, israelitas e gentios — todos dormiam juntos sem estarem cônscios uns dos outros."

No Antigo Testamento, o Seol aparece referido 65 vezes, a saber, em:

Génesis 37:35; 42:38; 44:29, 31
Números 16:30, 33
Deuterónimo 32:22
1 Samuel 2:6
2 Samuel 22:6
1 Reis 2:6, 9
Job 7:9; 11:8; 14:13; 17:13, 16; 21:13; 24:19; 26:6
Salmos 6:5; 9:17; 16:10; 18:5; 30:3; 31:17; 49:14, 15; 55:15; 86:13; 88:3; 89:48; 116:3; 139:8; 141:7
Provérbios 1:12; 5:5; 7:27; 9:18; 15:11, 24; 23:14; 27:20; 30:16
Eclesiastes 9:10
Cântico dos Cânticos (de Salomão) 8:6
Isaías 5:14; 14:9, 11, 15; 28:15, 18; 38:10, 18; 57:9
Ezequiel 31:15, 16, 17; 32:21, 27
Oseias 13:14
Amos 9:2
Jonas 2:2
Habacuc 2:5.

A Nova Enciclopédia Católica define assim o Seol:

"Na Bíblia, designa o lugar de completa inércia ao qual se desce quando se morre, quer alguém seja justo, quer iníquo, rico ou pobre." (Vol. 13, p. 170, em inglês).

O Seol, segundo Samuel Peake, em A Compendious Hebrew Lexicon, é:

"O receptáculo comum ou região dos mortos; chamado assim por causa da insaciabilidade da sepultura, a qual como que sempre pede ou quer mais". (Cambridge, 1811, p. 148)

O Seol era, portanto, para os Hebreus Antigos, o lugar vago, indefinido, para onde iam todos os que morriam. A morte do corpo, para a maior parte dos Judeus, não significava o fim do Ser. Então, o Seol era o equivalente judaico ao Hades, ao reino das sombras das culturas Grega e Romana.

Nas primeiras traduções da Bíblia, com destaque para a famosa Septuaginta, vertida do Hebreu para o Grego por mais de 70 rabis, a palavra Seol foi precisamente traduzida por Hades.

Olhemos então para a imagem que ilustra esta entrada. Trata-se de uma pintura contemporânea de O Auto da Barca do Inferno, referido no primeiro post desta série. Podemos apreciar nesta pintura, de autor desconhecido, patente no Museu Nacional de Arte Antiga, um outro tratamento criativo do tema do Inferno, tal como Gil Vicente, Dante Alighieri, Miguel Ângelo, Luciano de Samósata, Salvador Dali, e tantos outros artistas fizeram.

Posto isto, perguntar-se-á:

O que é o Inferno, afinal? É o Seol, ou Hades?

Demos a palavra a Brynmor F. Price e Eugene A. Nida, que escreveram em A Translators Handbook on the Book of Jonah, 1978, p. 37:

"A palavra ocorre muitas vezes nos Salmos e no livro de Job para se referir ao lugar ao qual vão todos os mortos. É representado como lugar escuro, em que não há actividade digna de menção. Não há distinções de moral ali, de modo que "inferno" não é uma tradução apropriada caso sugira um contraste com o "céu" como morada dos justos após a morte. De certo modo, "a sepultura", em sentido genérico, é um equivalente próximo, excepto que Seol é mais uma sepultura em massa, em que todos os mortos moram juntos."

Não porque Price e Nida escreveram, mas porque toda a História o comprova sem margem para dúvidas, o Seol Judaico que aparece no Antigo testamento não é o Inferno da tradição popular, reproduzido durante séculos na imaginação colectiva pelas interpretações alegóricas dos artistas e pelos êxtases dos místicos.

De onde vem então a palavra "inferno"?

A Bíblia não foi apenas traduzida para o Grego, como sabemos. O Latim, outra Língua dominante do Mundo Antigo, também precisou de encontrar um equivalente a Seol e Hades. Escolheu-se a palavra inférnus (ou ínferus), que em Latim quer dizer "o que jaz por baixo", ou "região inferior". Uma escolha ajustada se tivermos em conta a visão cosmológica Clássica, que ilustra o post anterior desta série, e que voltamos a reproduzir:



Veja-se a linha que separa a terra do céu, os "abismos das águas" (não se sabia que a Terra era redonda, os "pilares da Terra", e lá no meio, o Seol, Hades ou Inferno.

Não encontramos na Bíblia, Antigo ou Novo testamento, qualquer referencia a um lugar de tormento ardente, caldeirões, torturas eternas. Tal concepção, veiculada durante séculos como "papão" auxiliar na conversão das massas, repugna ao raciocínio dos nossos dias, que só pode conceber Deus como Infinitamente Justo e Bom. Ora, se a Justiça imperfeita dos Homens não condena ninguém a tais suplícios, pretender que Deus o faça é fazer fraca ideia dEle...



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